09 julho 2006

Nunca é tarde!





Os olhos deslizaram mais uma vez, pararam sobre a claridade do sol na grama verde. Toda a imobilidade da cena se perdia em uma imensidão de pensamentos que, ao se cruzar, faziam da solidão o desespero de Sofia.

Aquele quadro era tudo o que restara de sua afortunada herança, a única coisa realmente valiosa na memória já vacilante de sua infância. A moldura guardava a beleza de uma vida que já não existia. A menina debruçada sobre a cerca, com o vestido vermelho balançando com o vento, acalmada pela cadência da água do riacho, simplesmente esperava. Essa era a sua missão. Quem poderia saber por quem a menina espera durante toda a sua vida? É apenas um quadro, uma confusão de tintas e cores que formam uma cena imaginária. Ou quem sabe real?

Sofia gostou do quadro desde o primeiro momento. Foi amor à primeira vista. Talvez o seu único verdadeiro amor tenha acontecido naquela tarde de calor em que, com apenas 5 anos, convencera o pai a lhe dar um presente. Caro, mas especial!

Ela teve de esperar muitas noites e outros tantos dias, mas valeu o sofrimento. Valeram as noites em que imaginava a menina de vermelho, simetricamente posta em sua parede, convivendo com ela, sendo sua amiga.

Agora, olhar para o quadro fazia Sofia pensar em todos os planos, em todos os sonhos. Sua vida fora linda, completa e feliz – ao menos na imaginação. Ela e a menina de vermelho esperavam juntas pelas maravilhosas aventuras e amores que o destino lhes reservava.

Mas são em momentos assim, quando a vida inteira passa diante de seus olhos, é que se sabe que a Dama Negra sempre avisa. Sofia sabia que alguma coisa era diferente e que tudo teria um fim.

Mas, então, onde ficaram as aventuras, os amores? Sofia só sentia saudade. E solidão. Por isso passava os dias ao lado do riacho de tinta e da cerca de tinta, com a menina de tinta. Essa era a sua vida, sua felicidade. Mas essa manhã era diferente. As cores não mudaram, a menina não mudou, a cerca estava lá e o riacho ainda corria.

Mas a culpa não era dela, era da menina. Agora ela entendia. A menina não esperava por nada, por ninguém. O seu vestido balançava no vento só pra cativar, conquistar, amordaçar Sofia. E ela passou sua vida esperando uma espera que não era sua.

Enfim, não era a sua vida que acabara ali. Mas a sua espera.

Sofia retirou o quadro da parede, pela primeira vez desde aquele domingo de alegria. A menina sentiu o que acontecia, seu vestido ficou mais vermelho, ela segurou com força a cerca e o riacho correu mais intensamente. Era o fim.

Quando a ponta surgiu desmembrando as teias da tela, dividindo as cores do riacho, Sofia chorou. Não era tristeza, era a sua raiva, toda concentrada na tesoura afiada que desfazia as seqüências da cena. A menina foi partia em duas, em três... até que ficou irreconhecível: um borrão avermelhado, despedaçado.

Quando tudo terminou, Sofia se ergueu, olhou em volta e respirou fundo. Avistou sua mesa, já posta, com o café da manhã. Todas as coisas estavam como eram: seus morangos e seu suco, o sol tocando levemente as louças e a mesa.

Ela sentou e comeu. Foi a primeira vez que sentiu como era bom estar ali.


(Laura Storch)